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Ana Manso & Olavo d’Eça Leal
Inauguração às
Até
Os primeiros homens, cujas mentes estavam absolutamente imersas nos sentidos, por uma demonstrada necessidade natural, tornaram-se poetas. “Como as crianças, quando se olham nos espelhos [e] querem agarrar as suas imagens”, escreve Giambattista Vico [1], estes primeiros homens usavam livremente a imaginação, procurando significações na constante transformação do mundo. Guiando-se exclusivamente pela imaginação, e através da projecção de si nas próprias experiências, deram nomes às coisas e, dessa forma, produziram as primeiras metáforas. A dado momento, viram num trovão a encarnação de Júpiter e passaram a denominar o trovão com o nome do deus dos deuses. Ao dar o nome de Júpiter a um trovão, tornaram-no um fenómeno. “A verdade é precisamente aquilo que é feito”, compreendeu Vico. São os homens que constroem as suas próprias verdades. A partir dessas operações metafóricas, os homens criaram fábulas, e com base nessas histórias, criaram mitos.
Ora, muito antes de Vico, Aristóteles procurou mostrar a possibilidade de uma verdade revelada pelas narrativas ficcionais que são os mitos. Elas não nos contam o que aconteceu, mas aquilo que poderia acontecer. Tendo como horizonte as possibilidades humanas, a poesia, por não se prender ao particular, e centrar-se antes num universal, torna-se mais verdadeira que a narrativa histórica. As histórias míticas adquirem uma forma intemporal e ubíqua graças precisamente a essa universalidade significativa que lhes é particular. São, por assim dizer, de todos e de ninguém. Acontecem fora do tempo e são válidas ao longo dos tempos.
São histórias que nos falam de deuses e homens, céus abertos, mares revoltos e águas calmas, ninfas, animais alados, corridas de cães, viagens a bordo de barcos e chegadas a ilhas desertas. Os desenhos de Olavo são uma pantomima dessas fábulas.
Olavo d’Eça Leal foi desenhador, pintor, escritor e jornalista. Trabalhou em cinema e teatro. Foi também locutor de rádio. As obras aqui apresentadas fazem parte do período em que Olavo colaborava na publicação das revistas Contemporânea e Litoral, entre os anos 20 e 40.
À entrada, o mosaico de Ana Manso remete-nos para esse momento ancestral que evocámos, quando os desenhos nos vasos de cerâmica, frescos nas paredes e pequenas pedras dispostas no chão contavam histórias. Contavam essas tais histórias que não eram verdadeiras nem falsas. Histórias exemplares, vislumbradas como reflexos e repercutidas como ecos da própria condição humana. Como a história de Io, a ninfa da Tessália, por quem Júpiter se apaixonou e, a fim de esconder os seus intentos à sua muitíssimo ciumenta esposa Juno, transformou em vaca.
Os desenhos de Olavo, de muito fino traço, parecem habitar o espaço das pinturas de Ana Manso. Nelas há ondulações, vibrações, intermitências, flutuações – o encontro das formas na abstracção, que é, porventura, aquilo que mais nos aproxima da realidade. As pinturas de Ana Manso são criadas por transparências justapostas, movimentos conscientes que revelam outros momentos e lugares intermutáveis. Momentos paralelos e momentos por vir. Uma suspensão reflexiva num fluxo de impressões.
É justamente esta hesitação na ordem perceptiva que nos reconduz ao início. Esse instante de “distracção” por excelência, de uso livre da imaginação. No encontro entre a depuração das superfícies de cor (ou ausência dela) das pinturas de Ana Manso e o traço firme e ténue dos desenhos de Olavo, vive-se um ritmo qualitativamente diferente. A este momento, Mircea Eliade deu o nome de «tempo concentrado».[2] sssZ como um sibilar baixinho, uma reverberação, um pedido de silêncio. Um desenho da luz que se segue a um trovão?
O tempo concentrado, enquanto desconcentração na ordem do tempo, é esse momento em que os homens se esforçam por sair de si, e reencontrar-se, “sem dar conta disso”, na dimensão do comportamento mítico.[3]
Filipa Correia de Sousa
1 Vico, Ciência Nova, 688, p. 519. Trad. Jorge Vaz de Carvalho
2 Eliade, Mitos, Sonhos e Mistérios, p. 27. Trad. Samuel Soares
3 Ibid., p. 26.