BADABUM!

Rita Ferreira & Jorge Varanda

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Until

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Muito alegre, demasiado alegre. (...) Mesmo os pobretes fazem-se de alegretes. Já viu que, quando não sabem o que hão-de fazer, sorriem, sorriem muito. É um esgar, pedem desculpa de tudo. Quanto a mim, nas malhas descaídas da memória, nasci já com imensa vontade de entristecer.

Maria Velho da Costa

“Badabum!” soa a estouro. É explosão, é barulho, é acidente, é susto, é caos, é barafunda. É o som de tambores a rufar e de pratos a tinir, o som do final de uma piada, porventura cómica, porventura trágica, perturbadora, intimidante. Em cada gargalhada tímida, um esgar de dúvida. Mas imaginemos agora esse som vibrante do rufar compassado dos tambores e pratos de choque de uma bateria antes do músico bater forte, finalmente, nos pratos de ataque. Um momento longo, mas muito rapidamente gestualizado, ritmado pelo movimento célere das baquetas, pulsação baixa, e reflectamos acerca do quanto este som, por vezes, aquando do seu escutar, pode trazer consigo o impulso e expectativa do contar de uma história que, mascarada de comédia, fala da tragédia do dia-a-dia, da violência que lhe subjaz, de um permanente mau estar, da constante procura por algo melhor, um lugar que nos albergue e que nos bem convenha no mundo, demanda penosa e mal-afortunada da vida, muitas vezes resultante num eterno sentimento de insatisfação, de angústia, de desconfiança. O relembrar de uma história que pronuncie os dissabores da vida, memórias vivas, vernaculares, que nos falem de apego e de desapego, de empatia e de esperança, daquilo que perdura ou daquilo que é esquecido, sobre imagens que, na sua estranheza, nos trazem familiaridade, sobre episódios que experienciámos ou que nunca vivemos, mas com os quais, contudo, nos identificamos. Sobre objectos que nos são caros, sobre coisas aparentemente banais pelas quais zelamos, sobre imagens que gravamos na memória, instruções de como agir, de como proceder, pequenos amuletos, talismãs guardados, desejados, cantilenas ou profecias ditas, por querermos bem ou mal, não importa. Aquilo que é determinante é que pode ser, efectivamente, no espaço de uma folha de papel em que uma história assim pode ser contada, é através dele que esses momentos de realidade vêm ao nosso encontro. Quando as formas desenhadas, pintadas, as palavras escritas, demarcadas e depuradas, agora observadas e lidas, trazem à presença uma amálgama de diferentes sentimentos, é então aí, nesse preciso momento, muitas vezes raro e inesperado, que o suave bater dos tambores vai crescendo, crescendo, e, de súbito... Badabum! – a força do gesto nos pratos de ataque desperta-nos para uma reconhecida inconformidade com o real, à qual só a arte dá acesso. Traços Tortuosos é uma banda desenhada inédita de Jorge Varanda, “artista sem bibliografia” como escreve Lígia Afonso [2]. As suas pranchas demonstram uma astúcia e inovadora formalidade do artista em contar e compor histórias sob um formato que viria, pensa-se, a constituir-se depois como fanzine. Esta narrativa, manifestamente violenta, crua e intensa, mostra-nos a desdobrada história de uma rapariga calva que, montada numa mula, procura gasolina em terras desconhecidas. Sob olhares indiscretos, dada a sua aparência, e após pedir direcções a algumas bizarras personagens que vai encontrando pelo caminho e que lhe comunicam que ali de nada vale o imenso ouro que traz consigo em troca de gasolina, e que somente “estampas” são ali valiosas, depara-se então com uma taberna, numa terra chamada “Traços Tortuosos”, onde, depois de dias sem comer, beber, nem descansar, lhe é dada uma refeição num falso gesto de simpatia do violento taberneiro que, mal reconhecendo o facto de estar diante de uma mulher, lhe oferece guarida, todavia, com o venenoso intuito de fazer dela prostituta. Sob as meticulosas pinceladas a tinta-da-china sobre papel, podemos ainda vislumbrar os traços a grafite que encenam o enredo e os diálogos pensados por Varanda, traçando uma narrativa que quase imediatamente nos faz recordar, por exemplo, a história de Myra, escrita por Maria Velho da Costa, ou a história de Mona, filmada por Agnès Varda (Sans toi ni loi, 1985). Histórias de mulheres sem destinos determinados, marginalizadas, vidas esquecidas, desafortunadas, exploradas, sem afecto aparente, mas nunca indiferentes a quem por elas passa, tal é a sua força, determinação e resiliência. Mas estes traços tortuosos de Jorge Varanda, chamemos-lhes assim, demonstram, a par com esta matéria desenhada mediante um manifesto sarcasmo entre prementes lacunas de moralidade e reserva, falam-nos também, e sobretudo, de uma inquietude para com a dita conformidade de padrões e directrizes definidas social e culturalmente, manifesta sob a forma própria de uma sátira que apela à analogia do grotesco e do escárnio sobre o trivial e o mundano – gesto notoriamente punk, particular à época. Uma Família Feliz é outro original exemplo: um dos filhos é morto pelo irmão, e os pais, muito pacatamente, ponderam acerca da situação e, por fim, decidem mandar embalsamar o corpo, de modo a não perder o abono de família. Por entre as pranchas de banda desenhada de Varanda, sobre elas ou sob elas, encontramos desenhos autónomos, plenos de cor, de modo subtil, porém firmemente seguros, sobre estruturas rígidas de ferro. A destreza do gesto de Rita Ferreira, mediante pinceladas mais largas, mais finas, circunscritas ou soltas, às quais é consentido o escorrimento da tinta diluída sobre o papel, é aqui pontuada por frases que aparentam ditar instruções, propor exercícios, sobrepostos a formas orgânicas e viscerais, intitulados “Plants of the Gods”: fresh or crushed; crushed in water. Fala-se aqui de plantas, de frutos, ou de corpos violentados? Outro desenho pronuncia: The dried, ground fruit is eaten... Porventura, a evocação de uma receita ancestral, um encantamento primitivo que dita que ao tomar as coisas da natureza no seu estado de rejeição, os corpos dos homens são despertados através de alucinações e de delírios. Sobre fundos claros ou escuros, formas metamorfoseadas mediante cores luminosas, velaturas escuras, intensas, escorrimentos longos e letras fragilmente desenhadas a pincel, os desenhos de Rita Ferreira têm sempre um ponto de partida que se define por imagens recolhidas e guardadas em arquivo. Um arquivo sem datas nem lugares definidos, e que se assemelha mais a um vasto conjunto de materiais e imagens recolhidos pela artista, as quais, porventura, sem a utilidade que lhes deveria ser prestada, são guardadas pela memória que acarretam, para depois tomarem um novo lugar, constituírem uma nova presença, formarem uma nova imagem, outra coisa, outras coisas, na sua abstracção pictórica ao olhar do espectador. E não deixa de ser curioso que, por casualidade, na terra de “Traços Tortuosos” imaginada por Varanda, o que é por nós determinado como mais precioso, nada ali valia. Preciosas são as estampas, essas sim; os bilhetes antigos, as fotos de passe, as caixinhas de cartão, os selos usados... Objectos que não têm valor aparente, excepto para quem os recolhe e guarda, nomeadamente, como é o caso de Rita Ferreira, por uma afinidade inexplicável, inefável, até, para depois reproduzir-lhes o contorno ou a mancha com afinco, dando-lhes novas vidas, oferecendo-lhes novos lugares, novos olhares. A visceralidade das formas e das frases, das expressões utilizadas, determinadas entre as finas pinceladas a negro de Jorge Varanda e entre as cores vibrantes, opacas ou translúcidas, de Rita Ferreira, quando confrontadas, levam-nos mais longe: conduzem-nos a memórias, a ficções, devaneios, compleições, divergências, inconformidades, inquietações, toxicidades, por meio da sátira e da ironia, excessos e intensidades, intimidades, pulsões e arrebatamentos, que edificam, de modo crescente, a experiência bem-aventurada do espectador diante de dois grupos de trabalho que aqui se contaminam e que articulam, através de diferentes meios e suportes, num contar de diferentes histórias, assentes no teatro do imaginário trágico, insólito e imprevisível sobre o real, tal como o conhecemos.

Filipa Correia de Sousa

1 Maria Velho da Costa, Myra, Assírio & Alvim, Lisboa, 2008, p. 134.

2 Lígia Afonso, “Pequeno Almoço sobre Cartolina”, presente no catálogo da exposição Pequeno Almoço sobre Cartolina de Jorge Varanda, CAM – Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012.