JAMAIS O ACASO

Belén Uriel & Luísa Correia Pereira

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Until

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O segredo dos espelhos é conseguirem romantizar-nos tanto. Que tortura subtil não seria destruir todos os espelhos do mundo... Onde é que poderíamos então encontrar a nossa identidade? [1] 

Truman Capote

(...) Há as nuvens, as árvores, as cores, as temperaturas. Há o espaço. É preciso encontrar a nossa relação com o espaço. Fazer escultura. Escultura: objecto. (...) Objectos para a criação de espelhos para a criação de pessoas para a criação de espaço para a criação de imagens para a criação de silêncio. [2] 

Herberto Helder

Uma coisa é sempre uma coisa. Mas essa coisa pode ser, ao mesmo tempo, outra coisa, outras coisas, muitas coisas. O espaço da imaginação é imenso, amplo, desmedido, quando nele se abre a possibilidade do surgimento da matéria hábil que compõe o desconhecido, o extraordinário, o indefinido. Na engenhosa planície translúcida que Foucault observou e estudou, o solo que desde muito cedo definimos entre as palavras e as coisas, entre a figura e o seu significado, entre os nomes e os sentidos que lhes atribuímos, dá-se, na profundidade do ser, uma íntima, imediata e constante procura das ferramentas certas, necessárias, para o ínsito exercício de determinar as coisas como nos sendo familiares e próximas. Experimentamos sempre uma inerente obrigação de procurar traduzir a tal coisa como ela nos foi ensinada a ser, como a compreendemos e conforme o sentido que lhe atribuímos, porquanto algo na morfologia do nosso pensar impele sempre à interpretação daquilo que aparentemente nos escapa, mediante um súbito sentimento de estranheza, de desarme, de confusão, que tentamos logo esclarecer. Mas é contra essa experiência de identificação, já quase tornada inata e inevitável, que a arte e as obras de arte podem fazer desencadear, quando francas e venturosas, uma certa sensação de desajuste, de sacudidela, de estremecimento; uma inerente sensação de vibração e de vertigem que nos faz constatar esse misterioso limite que criámos ao nível do nosso próprio pensamento. Como na infância, quando encontramos pela primeira vez uma coisa (uma flor, um insecto, uma sombra, uma nuvem, uma poça de água, um reflexo) e a contemplamos, atentos, curiosos, sem ainda lhe conhecer o nome. A obra de Luísa Correia Pereira e a obra de Belén Uriel fazem-nos reconhecer esse sentimento primordial de descoberta, de curiosidade e de encanto perante as coisas no mundo, desconstruindo-as, metamorfoseando- as, recriando-as e compondo-as sob novas formas.

Estas aguarelas de Luísa Correia Pereira, pela fluidez da matéria diluída em água que preenche o papel, falam-nos de luz, de cores quentes, de cores frias, de horizontes, formas ondulantes, justapostas, vibrantes; ecos que ressoam e reflexos que brilham, padrões da terra e mapas de céu, vitrais coloridos num qualquer templo de celebração a algo que nos ultrapassa na nossa parca condição humana. Representações de sonhos, talvez; de fantasias e desejos. Serpentes que são serpentinas, arcos que são postigos de entrada para outros lugares, asas abertas de aves com penas de muitas cores, renascidas em toda a sua intensidade e exuberância. São manifestações de situações insólitas e de composições sem par, forças em tensão, impulsos em suspensão e explosões de energia. Pequenas janelas de pequenos habitáculos, abertas a horizontes de azul, de verde, de amarelo... Visões de caleidoscópio, enigmáticas, místicas, embora quase sempre insuficientes dada a riqueza de aparições que fazem acontecer, tal como quando as experimentávamos quando crianças, e rodávamos com gentileza aqueles muito pequenos tubos de jogos de vidros coloridos, reflectidos pela luz em muito pequenos espelhos – nesse tempo, aparentemente distante, em que víamos o mundo abrir-se em pleno à nossa frente, mais vivo, mais verdadeiro; quando nos dirigíamos ao seu encontro e não existiam ainda disfarces por desvelar nos espelhos, objectos de afinidades.

Ora, é contra essa expectativa de reconhecer um certo objecto, uma forma habitual, uma ordem pré- estabelecida, uma utilidade determinada, uma função atribuída, que se rege a obra de Belén Uriel. A meio da sala, como um biombo que esconde e protege, a peça curva-se e volta a curvar, apelando à aproximação e perscrutação das metamorfoses que nela acontecem. A luz é reflectida nas diferentes densidades translúcidas, espelhos moldados pelo fogo, onde muito pequenas bolhas de ar habitam perpetuamente. Amareladas colmeias, alvéolos, favos de mel construídos pela cera de abelhas, remetem-nos para um abrigo de luz numa estrutura de ferro pintada de rosa-pálido. As formas serpenteiam, criam jogos de sombra e de luzes, tornam desfocadas as formas para lá dos vidros. Ali pousado, encontramos um capacete; é de vidro, frágil conquanto pesado, à procura de outra função, assumindo outra forma. No biombo também se abrem rasgos, entre vitrais de asas cristalinas que foram outrora tecido de uma tenda desarmada que a cera de abelha moldou (também as asas de Ícaro, sonhador, eram de cera) e que foi, depois, tornada vidro. Asas como as das aves e dos insectos, até mesmo dos peixes, daqueles que saltam na superfície das ondas; mas também asas nas quais pegamos para levar connosco, asas que levamos na mão ou ao ombro e que carregam o peso dos dias, a matéria do nosso quotidiano e da nossa vivência. Subtilmente pousada, acima do olhar, desafiando as leis da gravidade dada a sua densidade, matizada e brilhante em tom de azul-claro, quase turquesa, aquilo que foi um pedaço de cadeira. Azul como a água limpa e cristalina onde podemos observar, absortos, o nosso reflexo; imagem em espelho ondulante, onde inevitavelmente procuramos a identidade das coisas.

Conta Borges, num poema, o tremendo medo que sentia em criança sobre aquilo que nos podem mostrar os espelhos. Outro rosto, outra identidade, uma máscara, muitas máscaras, sombras de atrocidades desconhecidas; temia, enfim, “Que o silencioso tempo desse espelho / Se desviasse do curso quotidiano / Das vãs horas humanas e hospedasse / Nos seus vagos confins imaginários / Inúmeros seres e formas e cores novas.” Mas sobre o poder dos reflexos, das formas e cores que, translúcidas, sempre ocupam esses espelhos, apenas o pensava, sem nunca o exprimir – “(Não o disse a ninguém; a criança é tímida.)”[3] Mas, talvez, aquilo que Borges mais temesse na infância não fosse o aparecimento de um infinito imaginário de formas, cores e seres que o universo pode abarcar – com efeito, a sua vasta obra mostra-nos isso mesmo –, mas a possibilidade de observar no espelho o acaso de um outro, noutro lugar, menos verdadeiro. Aquilo que perdemos e que, depois da infância, muitas vezes receamos, é não conseguir mais regressar a esse mundo onde todas as possibilidades não são passíveis de normas, onde as coisas podem ser outras tantas coisas, onde a incerteza reina, para depois, sem remédio, dar lugar ao cepticismo, e onde a timidez foi obrigada a perder-se, para se renovar como determinação em regrar as coisas e os fenómenos. Voltemos, por isso, a Borges:

“Eu, que senti o horror dos espelhos/ Não só ante o cristal impenetrável/ Onde acaba e começa, inabitável/ Um impossível espaço de reflexos,/ Mas ante a água especular que imita/ O outro azul no seu profundo céu/ Que às vezes raia o ilusório voo/ Da ave inversa ou que um tremor agita/ E ante a superfície silenciosa/ Do ébano subtil, cuja tersura/ Repete como um sonho essa brancura/ De um vago mármore ou uma vaga rosa,/ Hoje, ao cabo de tantos e perplexos/ Anos de errar sob a diversa lua,/ Pergunto-me que acaso da fortuna/ Determinou que temesse os espelhos.” [4]

Bem-aventurados são, pois, a arte e os artistas, os poetas, que não ao acaso, nos fazem reconhecer o espaço que ocupamos no mundo, os espelhos que nos desolam pelas afinidades que perfilhamos, a falsa identidade das imagens que neles procuramos, fazendo-nos, enfim, admitir que as coisas apelam a jogos de identificação, jogos de sentidos, pois as coisas são mutáveis e passíveis de metamorfoses que lhes roubam um significado imediato. Bem-aventurados porque nos mostram que o mundo é esse lugar de criação, é lugar onde se dão novos sentidos às coisas e, com a franqueza que lhes é própria, nos desarmam perante ele e sempre encorajam a um novo caminho, rumo à descoberta.

Filipa Correia de Sousa

1 Truman Capote, Outras vozes, outros lugares, tradução de Maria João Delgado, Lisboa: Sextante Editora, p. 122.

2 Herberto Helder, Apresentação do Rosto, Porto: Porto Editora, 2a edição da obra, 2020, p. 15.

3 Jorge Luis Borges, “O espelho” presente na obra “História da Noite”, Obras Completas 1975-1985, vol. III, Editorial Teorema, 3a edição, 2010, p. 197.

4 Id., “Os espelhos” presente na obra “O Fazedor” (1960), in Obras Completas 1952-1972, vol. II, Lisboa: Editorial Teorema, 1998, p. 188.