MÃO-ASA OLHO-SATÉLITE

Gonçalo Barreiros & António Costa Pinheiro

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Until

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Vamos dar a nós mesmos, por alguns instantes, uns ares de eternidade. Vamos sair do tempo e do espaço para ver, como espectadores, o filme do universo. Certamente que nos deixaremos impressionar pelo grandioso e pelo fulgurante. Decerto a extravagância das massas de matéria e dos débitos de energia nos cortará a respiração. Mas será afinal outra coisa que, antes do mais, prenderá a nossa atenção. Vigiaremos, de olho bem aberto, o aparecimento da estrutura, o acesso, por níveis sucessivos, da matéria à organização. (...) Admirados, veremos o universo escapar e continuar em frente a sua busca. Busca de quê? [1]

Hubert Reeves

Para lá do lugar que habitamos, para lá dos caminhos que percorremos sob a vastidão escura da abóbada celeste que sempre nos causa curiosidade e espanto quando a noite se instala, não há som. Há, sabemo-lo, um imenso silêncio onde nenhuma forma de ruído se propaga. 

Se aqui, neste pequeno lugar que ocupamos sob a extensão do universo, já experienciámos o silêncio, e ele terá sido, porventura, sentido como algo de esmagador, de excessivo, angustiante ou, pelo contrário, gerador de uma sensação de quietude e apaziguamento, de conforto. No cume de uma montanha ou nas profundezas das águas, diz-se que podemos experienciá-lo de uma forma ainda mais intensa e inquietante. Quando experienciamos um silêncio penetrante, a nossa respiração e o bater do nosso coração, o fluir do sangue no corpo, tornam-se brutalmente audíveis. Este é o silêncio que conhecemos. Mas para além das fronteiras terrestres, resta-nos apenas imaginar esse imenso, absoluto e atordoante silêncio no vácuo do espaço sideral. Na obscuridade desse vazio tão transbordante porquanto cheio de coisas, onde o som não se propaga, existe um tipo de silêncio que nos é desconhecido, acompanhado por uma imensidão de luz. Talvez por não compreendermos bem o silêncio quando na expectativa de ouvir som, o início do visionário filme de Stanley Kubrick, 2001: A Space Odissey, tenha causado tanta dúvida e consternação à época. Os minutos da escuridão silenciosa que abrem o filme baseado na obra de Arthur C. Clarke, deixam-nos inquietos, pois colocam à prova certezas que julgamos arreigadas, mediante aquele ruído crescente, crescente, progressivamente desconfortante e que chega a tornar-se ensurdecedor. Por instantes, o ruído dissipa-se, e inicia-se o prelúdio do poema sinfónico de Richard Strauss, inaugurando esse momento que se tornou memorável na história do cinema, quando Kubrick nos dá acesso ao vislumbre de algo que imediatamente reconhecemos: a imagem do planeta que nos acolhe ante a estrela que o ilumina, uma faixa da sua forma esférica em resplandecência, quando o rectângulo negro do ecrã progressivamente se inclina e a deixa aparecer, lentamente, mediante uma melodia que desperta sentimentos de esplendor e comoção, propiciando uma experiência de um sentimento de triunfo sobre o desconhecido e o imaginado.

Se ali a experiência do som, ou da sua ausência, nos podem causar estranheza ou assombro, o aparecimento da luz revela-se familiar e próximo. Trata-se de uma experiência sinestésica que podemos dizer que ocorre, sobretudo e seguramente, quando nos encontramos diante de uma obra de arte. Com efeito, a fim de descrever a sua experiência enquanto espectador, Erling Kagge lembra Denis Diderot, quando este afirma que “qualquer pessoa”, contemplando uma obra, “se assemelha a um homem surdo que observa linguagem gestual sobre um tema que lhe é familiar”[2]. Diante das obras de arte, estabelecem-se mecanismos tácitos de linguagem; colocam-se questões, procuram-se respostas, e as palavras parecem sempre insuficientes. São trazidos assuntos para muito perto de nós, no mesmo instante em que afastamos outros do pensamento. Procuramos identificações, associações, através das propostas que nos chegam a partir da sua complexidade, ou a partir da sua surpreendente simplicidade, da sua ironia, jogo ou seriedade. Perscrutamos, alcançamos, descobrimos, falhamos, tentamos de novo, reflectimos, retomamos, repetimos, e sentimos o peso vertiginoso do silêncio quando nos deparamos com tanto ruído. “Ficamos surdos quando estamos perante a obra de arte”, diz Kagge. Melhor dizendo, ficamos surdos quando a imaginação nos leva além, mais longe, e traz à luz as nossas indagações e inquietações, mediante o poder da nossa imaginação, se esta não estiver adormecida e se lhe forem dadas asas, como viu António Costa Pinheiro.

«Não como Psicólogo, não como Sociólogo, não como Politólogo, não como especialista deste ou daquele ramo do Saber, mas sim como IMAGINATIVMAN tenho a impressão de que muitos indivíduos trazem consigo a Imaginação num permanente “silêncio” e que, por isso, se podem tornar máquinas complexas... SILÊNCIO (conferência imaginária interrompida)», escreveu Costa Pinheiro. Imaginative man... A demanda deste artista prende-se sobretudo a esta faculdade, porventura, em risco de perda irremediável ao longo da vida – a da imaginação. A partir dela, Costa Pinheiro compôs estudos, gráficos, exemplos esquemáticos, criou novos planetas, novos satélites, novas órbitas, concebeu naves e homens que viajam pelo espaço, cosmonautas e «universonautas». Criou sonhos, devaneios, esboçou monólogos e diálogos entre personagens em situações insólitas. Deu-lhes forma, mergulhou-as em muitas cores e diagramas, inseriu-as em paisagens e cidades utópicas sob novas formas de linguagem. Providenciou-lhes um lugar no tempo, no espaço, nos estratos profundos do excepcional e do absurdo que compõem a realidade através da fantasia. Nas suas palavras, “– o que é isso a imaginação? – é uma coisa que nos faz bem ter quanto se tem.”[3]

Ora, também o trabalho de Gonçalo Barreiros se desenvolve sobre estas premissas: sobre o confronto entre a ironia e a seriedade, a estranheza e a familiaridade, o inesperado e o certo, o insólito e o convencional, o absurdo e o coerente. Diante das suas obras, a nossa percepção da realidade é sempre posta à prova, através do desafio e encorajamento da capacidade que temos de imaginar.

A meio da sala ergue-se um monólito. Há vários cacos, uns maiores, outros mais pequenos, espalhados no chão. Terá caído ali, ou brotou do chão? Será que, como acontecia no início dos tempos, foi levado até ali com o propósito de uma celebração mística, espiritual? Ou, à maneira da sugestão do visionário Arthur C. Clarke, este monólito representa algo extraterrestre, uma forma de inteligência alienígena que possui outra forma de conhecimento a instruir à humanidade? Atentemos à sua presença na sala: uma sensação desconcertante de confusão, de não saber ao certo se esta escultura é extremamente pesada ou extremamente leve, apodera-se de nós. Sem brilho nem reflexos, a luz molda-lhe a superfície cinzenta como se um imenso bloco de matéria plástica tivesse acabado de ser moldado com as mãos. Como um bloco de plasticina que, nas mãos de uma criança que brinca, absorta, não tem lugar específico ou tempo determinado. Um bloco de plasticina, nas mãos de uma criança, pode ser um homem, pode ser uma árvore, uma casa, uma cama, um carro, um comboio, um foguetão, uma nave espacial, um planeta. Matéria de um jogo infinito de possibilidades e realidades. Um jogo, uma brincadeira – uma brincadeira séria! –, que vai deixando de ser transparente, cristalina, para se tornar progressivamente opaca, esquecida e perdida, a determinada altura, nas nossas vidas. 

Os trabalhos de Costa Pinheiro e de Gonçalo Barreiros trazem de volta esse jogo, esses momentos de confusão, de atenção e de júbilo mediante uma linguagem que nos era tão instintiva outrora e que nos é tão estranha agora, e acerca da qual não podemos deixar de sentir uma certa sensação de ironia trágica perante a nostalgia de uma capacidade de liberdade perdida. Como escreveu Costa Pinheiro: “A ironia? Também acredito que seja absolutamente necessária. Quando eu era pequeno, achava a situação de um pinto a sair do ovo extremamente irónica... Mais tarde, achei de pura ironia o facto de a Terra estar suspensa no espaço. Mais tarde, ainda, compreendi que as pessoas que não têm ironia, perderam qualquer coisa na sua vida que lhes é especialmente importante. (...) Pensei muitas vezes também que em cada pessoa vive uma «criança»... mas o que já não acho nada irónico é que a matem...”[4]

Venturosos, os artistas e a sua obra, por nos trazerem de volta a esse lugar já distante, conquanto mágico e livre – um lugar abstracto que, se continuarmos à escuta no aparente silêncio, nos arrebata de tantos sons e melodias entoadas –, encorajam-nos à ampliação da capacidade de imaginação que, à semelhança do universo, escapa e parte em busca de algo mais, sempre “transparente em direcção ao futuro”.[5]

Filipa Correia de Sousa

1 Hubert Reeves, Patience dans L’azur, trad. portuguesa: Um pouco mais de azul – A Evolução Cósmica, trad. de Armando da Silva Branco, revisão de Jorge Branco, Gradiva Publicações, Lda., Lisboa, p. 60.

2 Erling Kagge, Silêncio na Era do Ruído, trad. de Miguel Castro Henriques, Quetzal Editores, Lisboa, 2017, reimpresso em abril de 2021, p.123.

3 António Costa Pinheiro, Imagination & Ironie, trad. portuguesa: Imaginação & Ironia, Sistema Solar (Documenta), Lisboa, 2015, p. 61.

Ibidem, p. 88. 

5 Cf. Hubert Reeves, op. cit., p. 36.