MICKEY MOUTH

Alexandre Estrela & René Bertholo

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Until

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Tens de enfiar a cabeça pela parede. Não é difícil atravessá-la, ela é de papel fino. O difícil é não nos deixarmos iludir pelo facto de que o papel já traz pintado, da forma mais enganadora, o modo como tu atravessas a parede. Isso leva-te irresistivelmente a dizer: «Mas não estou eu permanentemente a atravessá-la?» [1]

Franz Kafka

Outrora acreditava-se que a derradeira imagem do mundo, o último vislumbre do lugar dos vivos, ficaria fixada nos olhos daquele que jazia morto. Descartes pensou a retina ocular como «uma folha de papel, fina e translúcida como a casca de um ovo» [2], na qual a imagem do que fora observado nos últimos instantes antes da morte ficaria, enfim, impressa e visível para aquele que examinasse minuciosamente esses olhos sem vida.

Hoje, parece-nos uma abordagem obsoleta à categoria da imagem, uma ideia vencida pelo tempo e pelo desenvolvimento do conhecimento científico, mas, em boa verdade, se «nós não vemos o mundo», mas antes «a luz que ele nos devolve», escreve Karl Ove Knausgaard, «a ideia de que essa luz de alguma forma se fixa no olho interior talvez não seja tão rebuscada como aparenta, pois, quando fechamos os olhos e bloqueamos a luz do mundo, não temos dificuldade em conjurar a sua imagem na escuridão dentro dos nossos crânios.» [3] Este ponto de vista, singular e particular a cada um de nós – o outrora designado “olho interior” onde se acreditava situar a alma e o pensamento dos indivíduos – é manifestamente tornado tangível, em particular, através da pintura, na ávida e venturosa procura de captar um determinado momento experienciado, um determinado fenómeno ou acontecimento, fixando-o para a eternidade, através da representação. «Pode imaginar-se», diz Knausgaard, «que as nuvens que Ruisdael pintou poderiam ter surgido nos olhos de um morto, um reflexo ténue a passar sobre o brilho dos globos que observaram vazios o céu, o modo como o seu reflexo transpôs sobre todas as superfícies que reflectiram a paisagem». Como sabemos, este “olho interior”, que era qualificável mediante a habilidade das mãos daquele que transpunha o imaginário para a superfície da tela, perde a sua posição hierárquica aquando do aparecimento de um engenhoso e surpreendente mecanismo que, a partir dali, viria a ser capaz de fixar a luz do mundo no papel, a imagem do mundo como ele advém, o mundo por si só, para lá de nós, ou seja, a realidade como ela acontece e se revela para além de uma necessária reflexão própria daquele que a experimenta e, enfim, a reproduz. É, então, a fotografia e, mais tarde, a imagem em movimento, que vêm mostrar «não um mundo sem a presença humana», pois não se trata de observar sob um ponto de vista arquimediano, mas a observação no mundo de “um lugar que se revela, [...] pois o mundo não é algo que é, mas algo que se transforma, e todas as imagens do mundo como ele se manifesta são, em certa medida, utópicas no seu sentido original: são não-lugares.»

É sobre estes não-lugares da imagem, em estado estático ou liquefeito e em movimento, esta matéria do imaginário que é reflexo da realidade sob regimes impostos de ordem e de caos, fixação e agitação, evidência e ficção, por intermédio de mecanismos que desafiam a perfilhação do real ao encontro da ilusão, mapeados em contexto de reservatório e de experimentação, que aqui se desenvolve um trabalho laboratorial artístico sobre o resultado dos fenómenos lumínicos e sinestésicos – não apenas em matéria morfológica e epistemológica, mas também em matéria metafórica e simbólica enquanto obra em movimento ou obra aberta em potência, como viu Umberto Eco – mediante a nossa experiência e interpretação enquanto espectadores destes universos imagéticos em constante produção, sugestão e metamorfose.

O diálogo que aqui se estabelece entre o trabalho de Alexandre Estrela e René Bertholo parte, justamente, dessa vocação e proposta de compreensão dos fenómenos imagéticos através das capacidades perceptivas e de memória do ser humano, desafiando a autonomia e resistência do nosso olhar e do nosso lugar quando em confronto com a imagem. Se o trabalho de Bertholo revela um universo composto por objectos das mais variadas categorias e funções, estilizados, agrupados numa ordem aparentemente desordenada em pequenas salas desenhadas, em projectos de máquinas, através de paisagens em movimento ou compartimentos cheios de inventários do absurdo, do “irrisório” sob as “múltiplas secções”4 que categoriza, resultando no desconcerto dos nossos alicerces de reconhecimento da linguagem das imagens – como ecos de trepidação da escavação arqueológica de Foucault que tem por base um texto apócrifo que apresenta signos e significantes sob uma lógica aparentemente delirante e absurda aos nossos olhos –, o trabalho de Estrela desafia, a nível visual, auditivo, perceptivo, o acontecimento da imagem. A imagem estática sob uma mecanização digital que impera através do desequilíbrio imposto entre o repouso e a agitação, a continuidade e a interrupção, mediante uma composição em movimento constante no plano destas esculturas. À imagem estática do ecrã é sobreposta uma imagem projectada, vibrante e disruptiva, que lhe potencia novas formulações, novos efeitos ópticos sob diferentes cadências. São figuras sintetizadas à sua forma mais original (círculos, quadrados, triângulos) entre resultados de gestos protagonistas de movimento (espirais, ondulações, planos sujeitos a reverberações digitais projectadas sobre os traços serigrafados) que se agitam a par e ritmo com sons graves, indistintos, palavras que parecem vir a formar-se, mas que logo se perdem tal é a aceleração destes sons cavernosos, intensos, gorgolejos profundos.

Tanto a nível hermenêutico como a nível fenomenológico, é aqui tornada manifesta a inexorabilidade do carácter efémero da imagem perante a matéria dos dias: refém do tempo, a imagem é ilusória, bem como a sua interpretação, sempre passível de desconstrução e de transformação mediante novos códigos e novos sentidos que lhe são atribuídos. A imagem fixa do mundo observado é sempre passageira, nunca lhe será permitida uma pausa, pois o mundo está sempre em movimento, sempre em corrida. Atrás de uma imagem de Bertholo vemos outras imagens, tornadas vivas pelo movimento das páginas, pela explosão de animação nos desenhos e serigrafias; sobre as imagens nos ecrãs de Estrela vemos outras imagens, animadas pela lanterna mágica no escuro que, em efeito caleidoscópico e trepidante, nos chama ao desafio, hipnotizando-nos. A imagem não é aqui sugerida para a eternidade como outrora, mas proposta a acontecer no presente: a abertura em potência de um lugar que surge apenas e mediante a participação e reflexão crítica do espectador. Com efeito, reconhece-se aqui a proposta de obra aberta de Eco: «A arte, mais do que conhecer o mundo, produz complementos do mundo, formas autónomas que se juntam às existentes exibindo leis próprias e vida pessoal. Todavia, cada forma artística pode muito bem ser vista, se não como substituto do conhecimento científico, como metáfora epistemológica: quer dizer que, em cada século, o modo pelo qual as formas da arte se estruturam reflecte – à maneira de similitude, de metaforização, precisamente, resolução do conceito de figura – o modo pela qual a ciência ou, de certo modo, a cultura da época veem a realidade». [5]

Pertencemos ao mundo dos fenómenos que experienciamos e que procuramos, irremediavelmente, fixar através da imaginação e da representação. Um mundo que é lugar de luz em constante metamorfose mediante os movimentos do tempo que nos condicionam e, ao mesmo tempo, nos libertam. Partimos em busca destes não-lugares a conhecer pois são eles que nos fazem tropeçar, desequilibrar, cair em armadilhas que estimulam a nossa percepção, que nos movem, surpreendem e arrebatam, desafios momentâneos que nos maravilham e que apelam à vigília, que nos despertam e criam expectativa. Neste laboratório de descoberta das propriedades predicativas e morfológicas da imagem ao encontro dos sentidos, desafiando a própria natureza interpretativa e intuitiva do espectador, Estrela e Bertholo dão-nos a conhecer aquilo que, no fundo, procuramos muito intimamente: um horizonte de possibilidades que se abra ante aquilo a que chamamos realidade, para lá daquilo que conhecemos. Um intrincado e desafiante mundo de ilusões que ambicionamos desvelar e compreender.Se estamos aptos a compreender este mundo que nos acolhe, porque momentaneamente saímos de nós próprios ao encontro dele – é esta a divisa da reflexão humana na sua condição primeira –, esta capacidade deve-se sempre, inegavelmente, à arte, essa que, ainda nas palavras de Knausgaard, numa aparente analogia à voz de Shakespeare, sempre “nos dissuade e nos atrai para mais perto do mundo, movimento lento da matéria nublada da qual os nossos sonhos também são feitos”. [6]

Filipa Correia de Sousa

[1] Franz Kafka, “Dos cadernos in octavo”, in Parábolas e Fragmentos, selecção, tradução e prefácio de João Barrento, Assírio & Alvim, Porto, 2a edição, 2012, p. 122.

[2] Durs Grünbein, Descartes’ Devil: Three Meditations (transl. Anthea Bell), Upper West Side Philosophers, 2010, apud. Karl Ove Knausgaard, “All That is in Heaven”, in In the Land of the Cyclops, transl. from the Norwegian by Martin Aitken, Penguin Random House UK, 2023, p. 6. (tradução nossa)

[3] Ibidem. (tradução nossa)

[4] Vide: «Inventário ‘Irrisório’ (Com Múltiplas Secções)», Catálogo da exposição: René Bertholo, Museu de Serralves, Porto, 2000, pp. 69-79. 

[5] Umberto Eco, Obra Aberta, trad. de João Rodrigo Narciso Furtado, Relógio D’ Água, Lisboa, 2016, p. 76.

[6] Karl Ove Knausgaard, op. cit., p. 14. (tradução nossa)