MORDEDURA

Bruno Cidra & João Hogan

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Until

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O poeta nada consegue, não consegue dar remédio ao mal; só o escutam quando elogia o mundo, não quando o retrata tal como ele é. [1]

Hermann Broch

Conta-nos Umberto Eco que “com a conquista do fogo nascem as artes” [2]. Tal como era relatado pelos gregos, Prometeu roubou o fogo divino e ofereceu-o aos homens, salvando-os da fatalidade da sua condição nua e vulnerável. “Aprendendo a fazer o fogo”, diz-nos Eco, “o homem assenhoreia-se de um poder que estava, até então, reservado aos deuses”, e com ele conquista a matéria, domina-a, transforma-a, celebra o cumprimento da técnica, combate o medo do desconhecido, desvenda a escuridão, clareia a vigília, aquece e alimenta o corpo. No entanto, sabemos que o fogo como elemento místico e divino entregue às mãos dos homens não é exclusivo à mitologia grega. O fogo pode ser visto como o elemento condutor e catalisador que leva os homens ao encontro dos deuses e dos espíritos, numa cerimónia mística, viagem purificadora, ascendente, mas podemos encontrá-lo também como símbolo de castigo, de penitência, de uma condenação eterna num inferno em chamas. Mas aquilo que o domínio do fogo inaugura, desde o início dos tempos, não é tão-somente o acesso a um segredo espiritual, distante, apartado da vida dos homens, mas, porventura, ao elo primordial, íntimo, profundamente verdadeiro, da relação estabelecida entre o homem e o mundo que o envolve. Com o fogo, os homens iluminaram as grutas, as trevas húmidas, frias e ameaçadoras, encontrando nelas abrigo e seguridade. Entre a luz trémula das chamas das fogueiras altas, os homens viram monstros, feras assombrosas que os perseguiam e guiavam em sonhos, e nas paredes das cavernas desenharam formas animais e formas humanas. Esculpiram e escavaram a rocha, criaram câmaras subterrâneas onde cuidaram os vivos e depois os mortos, cumprindo o luto em mausoléus sob a terra, nesses sepulcros posteriormente encerrados onde a lei do tempo não prevalece. Por dominarem o fogo e por executarem as técnicas conquistadas ao manipulá-lo, iluminando o que pintavam e o que gravavam, o que esculpiam, o que moldavam através do papiro humedecido e dos panos embebidos em óleos e tintas, ou liquidificando e modelando o cobre ou o ferro, o ouro ou o vidro, os homens criaram obras de arte pela procura de vencer a mortalidade, transcendendo assim a sua condição primeira. E, ao transcendê-la dessa forma, foram capazes de suspender a cadência natural do tempo [3]. Talvez por isso, quando Howard Carter viu pela primeira vez, à luz da vela, o túmulo perdido do Rei Tut, repleto de esculturas, de gravuras e de pinturas entregues à eternidade, tesouros acumulados no chão e tesouros que ocupavam as paredes, tenha declarado que o tempo, como entendido pelos homens, perdera ali todo o seu significado.

Estas obras de João Hogan e de Bruno Cidra falam-nos daquilo que, muito intimamente, diz respeito ao homem e à relação do homem com o mundo, com o mundo tal como ele é, como é visto, como é contactado, como é construído. Falam-nos de algo que tem que ver com a mais sincera relação com a matéria, a relação das mãos com a matéria em chamas ou humedecida, dando-nos a conhecer a sua manipulação e a sua possível metamorfose, sob práticas e experiências alquímicas, ancestrais, primitivas, entre fios de água e línguas de fogo, trevas e revelação, obscuridade e luz. Falam-nos também, pela tão franca afinidade à matéria, da experiência do tempo e da acção do tempo sobre as coisas, sobre a condenação ao pó e à ferrugem, à corrosão do metal, à deterioração do papel, sentença inexorável daquilo que é usado, manuseado e deixado para outros tempos e para outros olhares. Há marcas de placas de cobre que foram superfície do traço e da mancha, “mordidas” pelos sucessivos banhos de ácido, buriladas, raspadas, riscadas; formas no espaço gravadas e entregues ao papel, reveladas através da tinta negra. Há esculturas que nos deixam vislumbrar fios e canos de cobre esverdeados, azulados, vísceras metálicas compactadas, agrupadas, moldadas, pisadas; corpos suspensos, esqueletos pousados, formas reintegradas pela pasta de papel outrora húmida, contaminada pela cor térrea da ferrugem. Fragmentos daquilo que, uma vez vencida a solidez e brutalidade da matéria pesada, se fez leve. Mas mais do que de ruínas, fragmentos e vestígios do que fica depois do tempo, o trabalho de gravura de Hogan e o trabalho de escultura de Cidra falam-nos sobretudo da vida, do engenho das mãos em tributo à terra, de uma nostalgia original pelo que é terreno, pela conquista primitiva dos elementos, pelo conhecimento das suas leis e dos seus movimentos, das suas forças, pulsões e suspensões, equilíbrios e perturbações, fazendo-nos reconhecer, assim, essa eterna resiliência do homem perante um mundo que é alcançado, que é compreendido, e que nos é dado tão claramente a redescobrir através do trabalho desses que, recorrendo às palavras de José Augusto França, vivem “no gosto de lidar com as mãos” [4].

Filipa Correia de Sousa

1 Hermann Broch, A Morte de Virgílio, trad. de Maria Adélia Silva Melo, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2014, p. 16.

2 Umberto Eco, Aos Ombros de Gigantes – Lições em La Milanesiana 2001-2015, trad. de Eliana Aguiar, Gradiva, Lisboa, 2018, p. 167.

3 Vejam-se as considerações de Mircea Eliade sobre o domínio do fogo, a experiência e a transcendência místicas nas tradições arcaicas, in Mitos, Sonhos e Mistérios, trad. de Samuel Soares, Edições 70, Lisboa, 2000, pp. 76 et seq.

4 José Augusto França, “Não há pintura sem gosto de mãos lidando”, in M. Martins da Silva, Obra Gravada de João Hogan, prefácio de Rui Mário Gonçalves, INCM, Lisboa, 1984, p. 35.