ÁGUA, VINHO, COROAS DE FLORES

António Neves Nobre & Igor Jesus

Inauguração às

Até

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(notas sobre a exposição)

1. Existe, na enumeração que compõe o título desta exposição, um sentido de sequencialidade trágica; uma tangibilidade do curso vitalício. A mesma poderia ser: nascer, viver, morrer; criança, adulto, defunto; surgimento, desenvolvimento, desvanecimento. Existe também, nesta enumeração, uma dimensão bucólica, que transcende o paradigma da causa e efeito, estabelecendo um protocolo comportamental, um cerimonial de grupo. O vinho na sua simbologia histórica e religiosa assume leituras de renascimento e fertilidade. Na cultura ocidental é sinónimo de bem estar, de prazer pela vida. Um bom copo de vinho agiliza sempre o espaço social; calha bem com amigos. 

2. Três elemento compõem o título e três elementos compõem a exposição. Modelam um corpo comum.

3. Boca é a primeira parte do sistema digestivo. Pela boca se ingere a água e o vinho. É o órgão através do qual é possível articular a fala. Contudo, como nos esclareceu Saussure, não se deve confundir fala com língua, nem esta com linguagem. A língua é um código social, homogéneo e exterior ao indivíduo, enquanto que a fala é um mecanismo psíquico-físico que permite exteriorizar as combinações desses códigos. Por sua vez a linguagem é tanto social como individual, é multiforme e heteróclita, dependendo da instalação da cultura no indivíduo para poder ser exercida. 

4. As pinturas de António Neves Nobre são, em simultâneo, uma imagem microbiológica e um cenário apocalíptico. É o vírus da linguagem que, na teoria burroughsiana, surge como doença causadora de mutações genéticas que se alastra pelos Homens. Curiosamente a cavidade bocal é também o sítio do corpo humano que apresenta maiores níveis e diversidade de microrganismos. 

5. Boca (2019) é uma imagem de pele tatuada; outra forma de falar. Ainda que podendo ser complementares, a linguagem no corpo difere da linguagem do corpo porque uma é hieroglífica e outra gestual. Tal como uma cicatriz, uma tatuagem tem uma leitura social, pertence a uma hierarquia, a um grupo, a uma ideologia. A linguagem no corpo é um diário de hábitos, de acontecimentos, de conquistas, de pertença. A propriedade do corpo é fundamental para os desígnios de pertença, de renuncia ou de afirmação a contextos específicos. Nas palavras de Igor Jesus, o corpo é o único espaço de total liberdade. 

A propriedade privada do prazer e das dores é a condição obrigatória da liberdade do ser vivo. Marcar o corpo através de um processo de dor é reconhecer o domínio sobre o corpo; no entanto, como escreve Hannah Arendt em A Condição Humana, “a felicidade alcançada no isolamento do mundo e usufruída dentro das fronteiras da existência privada do indivíduo jamais pode ser outra coisa se não a famosa ‘ausência da dor’” isto porque, o reconhecimento da liberdade do corpo só é realizável com a possibilidade de interromper essa mesma dor. 

6. As pinturas subvertem o processo de apropriação do manual pelo digital, da substituição do Homem pela máquina, da mecanização do processo criativo. A técnica aplicada resulta numa imagem que  sugere uma estética digital, uma imagem virtual criada através de uma sonda de sonar. Um som constante, preenche o espaço.

7. Um som constante preenche o espaço, em frequências alternadas que reagem à variação cromática da pele tatuada. Igor Jesus, que frequentemente perscruta a transposição de qualidades mecânicas para o corpo Humano atribui à máquina propriedades de leitura de escrita:

“...uma palavra escrita é uma imagem e as palavras escritas são imagens em sequência, quer dizer, figuras em movimento. Assim, qualquer sequência hieroglífica nos dá uma definição admissível imediata de palavras faladas. As palavras faladas são unidades verbais que se reportam a esta sequência pictórica. E então o que é a palavra escrita? A minha teoria de base é que a palavra escrita foi literalmente um vírus que tornou possível a palavra falada. A palavra não tem sido reconhecida como vírus porque atingiu um estado de simbiose estável com o hospedeiro...” William Burroughs, A revolução electrónica.

8. O vírus de Burroughs não actua apenas biologicamente mas também simbolicamente. O vírus da linguagem é também o vírus do signo, da cultura. “A palavra escrita é, evidentemente, um símbolo de qualquer coisa”. Escrever é produzir um acontecimento, criar uma nova realidade.  

9. Um som constante ocupa a sala, varia com a intensidade lumínica. As imagens reagem à luz tanto quanto o som reage à luz. As imagens reagem ao som tanto quanto o som reage à imagem. Morre a luz, morrem as imagens, morre o símbolo.

10 (nota extra). Uppercut é um golpe para atordoar com eficácia. Idealmente executa-se a curto alcance. É para arriscar.

Miguel Mesquita

Maio 2019