COME HERE, THERE’S SOMETHING I WANT TO SHOW YOU
Catarina Dias & Corita Kent
Inauguração às
Até
Little finders
(...) a frase desenha-se – a intenção adivinha-se – as coisas permanecem espirituais. (...) a palavra permanece pura como a luz que ela atravessa e toca (...) Não se perde nas cores que provoca.
Paul Valéry [1]
O poema chama as coisas nomeando-as. Convoca-as à presença num apelo. “A presença da poesia é uma presença por vir”[2], escreveu Maurice Blanchot.
Outrora cantada pelos Antigos, a poesia é o produto que mais se aproxima do pensamento que o originou. Diz-nos Hannah Arendt que um poema é o que menos se assemelha a uma coisa. No entanto, “até mesmo um poema, não importa quanto tempo tenha existido como palavra viva (...) terá, mais cedo ou mais tarde de ser «feito», isto é, escrito e transformado em coisa tangível para habitar entre as coisas”.[3] Ele nasce da necessidade da linguagem, de comunicar aos outros, do sair de si, do querer mostrar; mas o poema precisa de ser transformado, e o gesto materializa esse apelo, procura dar-lhe forma.
Essa metamorfose começa, porventura, na tradução dos pensamentos através do desenho das letras que compõem as palavras. Começa na indecisão própria de fazer um poema que é preciso ler enquanto imagem que é preciso ver (como pretendia Mallarmé através do “lance de dados”, o jogo de formas que procurou criar na obra Un coup de dés). Nesse processo de transformação, “já não digo: uma flor; desenho-a com vocábulos”[4].
Corita Kent dizia que pensava a escrita como uma forma de desenho. “Penso sempre as formas das letras como objectos, tal como as pessoas, as flores”, “de maneira que simplesmente desenho as palavras”[5], afirmava. De facto, Corita pegou nas palavras e desenhou aquilo que é a matéria que compõe o tempo. Com uma determinação intrépida, a sua obra fala-nos de amor, de injustiça, fragilidades, motivações e, sobretudo, de esperança. Mas se, a determinado momento, procurou Deus nestas mensagens, não encontrou uma forma de escapismo. Corita procurou mostrar como a espiritualidade faz parte da nossa vida, ou até mesmo que existe uma certa deidade que nos constitui[5]. A imagem de amor mundi, encontrou-a através de justaposições de citações bíblicas, filosóficas e poéticas, com os manifestos mais seculares e efémeros: slogans, sinais e publicidade nas ruas, jornais e revistas, marcas anunciadas nas montras das lojas e nos artigos de supermercado. Foi na cultura vernacular, na proliferação de imagens, texturas e cores do comércio e consumismo urbanos, que Corita encontrou o veículo para as suas mensagens – não de devoção e consolo, mas de activismo.
Ao pensar as imagens com palavras na mesma medida que imagens com formas abstractas ou figurativas, as suas serigrafias denotam uma construção pictórica muito experimental. As letras são distorcidas, invertidas, tornadas autónomas; o espaço gráfico liberta-se, as palavras e frases são descontextualizadas e integradas em novos planos e composições.
Corita levou os seus alunos para as ruas e, com pequenos pedaços de cartão com rectângulos recortados ao centro (aos quais chamou de looking tools ou little finders), pediu-lhes que olhassem atentamente para o mundo que os envolvia, “uma pequena parte de cada vez”, e que, dessa forma, tomassem decisões sobre o próprio modo de olhar, focando-o, sem se distrair com o contexto.
Os desenhos de Catarina Dias também pedem que tomemos decisões: “slow things down” – um pedido ou um aviso?
Estes desenhos, na parede, são como ecrãs que dão substância ao tempo; emanam uma energia contagiante. As letras formam-se, primeiramente, na sua subtracção à superfície. O spray cria texturas, dá-lhes luz e tridimensionalidade, e o ulterior gesto pictórico, traçado através do vermelho da tinta guache, fá-las vibrar. É curioso pensarmos que este mesmo tom de vermelho foi usado nas mensagens escritas nas paredes da cidade sepultada pelas cinzas do Vesúvio. Nesse lugar onde o tempo parou, as palavras a vermelho ainda lá estão desenhadas, imperecíveis.
Quando pensamos em frases pintadas nas paredes, de modo geral, associamo-las a desabafos, a declarações, a profecias. Mas as mensagens nestes desenhos não pressagiam algo por vir; despontam, antes, como lâmpadas de néon que, na chegada do ocaso, nos situam.
Ao centro, um desenho levita. Este desenho de Catarina Dias não se eleva enquanto algo que nos esconde atrás do texto, mas que nos incorpora. As palavras recortadas dão-nos acesso a outras leituras, a outros espaços e momentos para além da sua superfície. O poema é promotor de um permanente acontecimento: materializa e desmaterializa as formas; ordena e desordena, afasta e contamina. O espaço vazio é espaço de construção: the handling is in your hands, lemos ao fundo. As mensagens de Corita Kent habitam o desenho. Ao mesmo tempo, os versos de Catarina Dias desenham formas de luz nas serigrafias. “An involuntary thought/ Comes from elsewhere/ Comes from elsewhere/ Comes from elsewhere”.
Duas superfícies distintas projectam este poema. Entre as palavras que o compõem, encontramos um pequeno ecrã recortado, como um little finder, que nos dá acesso a outros fragmentos de mundo. “A ideia de usar palavras com formas visuais, e de recorrer apenas a curtas passagens, é muitas vezes uma maneira de ajudar a despertar as pessoas para algo que elas podem não estar cientes”[6], diz-nos Corita. O próprio título da exposição que junta estas duas artistas, pensado por Catarina, reclama esse apelo mútuo: o de procurar mostrar as coisas que não estamos treinados a reparar.
Filipa Correia de Sousa
Março 2019
1 Valéry, Tel quel. Littérature. [«(...) la phrase se dessine – l’intention se devine – les choses demeurent spirituelles. (...) la parole demeure pure comme la lumière quoi qu’elle traverse et touche. (...) Elle ne se perd pas dans les couleurs qu’elle provoque.»]
2 Blanchot, O Livro por Vir, p. 268.
3 Arendt, A Condição Humana, p. 210.
4 Blanchot, op. cit., p. 269.
5 Corita Kent interviewed by Bernard Galm, Los Angeles Art Community: Group Portrait, 14, p. 138.
6 «(...) I thought of them [the phrases from advertisements] as meaning something else. Like, “put a tiger in your tank” I really think of as saying [that] the spirit, whatever the spirit means to us, is inside of us, the God who is in us, or is us (...).» in Kent, op. cit., p. 92-93.
7 Kent, op. cit., p. 72.