DA CAPO

Jorge Molder

Inauguração às

Até

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– Disse-te da última vez, disse-te da penúltima vez, disse-te cem vezes, tens a certeza de não saber? A criança achou melhor não responder. A senhora reconsiderou novamente o objecto que estava na sua frente. A sua fúria aumentou. (...) – O que se passa – continuou a senhora –, o que se passa é que tu não queres dizer. (...) A criança virou a cabeça para esta voz, para ela, depressa, o tempo de se assegurar da sua existência, depois retomou a sua pose de objecto diante da partitura. As mãos continuavam fechadas. (...) – Recomeça – disse a senhora. A criança não recomeçou. – Recomeça, já disse. A criança não se mexeu mais. O ruído do mar no silêncio da sua obstinação fez-se ouvir de novo. Num último sobressalto, o rosa do céu aumentou. – Não quero aprender piano – disse a criança.

Marguerite Duras [1]

“O que se passa é que tu não queres dizer”, diz-lhe a senhora. Não; ele não quer dizer. Ele não precisa de dizer. O pensamento encontrou outro lugar. O tempo passou, o silêncio manteve-se, a cor do céu mudou. Na sua legitimada existência, ele reconhece-se enquanto corpo que pertence ali, àquele lugar, àquele momento, àquele preciso instante, pelo que logo retoma “a sua pose de objecto”. Tensão e obstinação. Está hirto, talvez; as mãos fechadas. O momento permanece aparentemente intacto, só o pensamento se mantém volúvel. É-lhe, então, pedido que recomece. Que repita, que regresse ao início. Como designado numa partitura: da capo...

Possa esta, porventura, ser uma metáfora do trabalho daquele que se fotografa. Ele não precisa nem quer dizer; é a imagem resultante que fala. Aquele que se fotografa mantém a “pose de objecto”, como um actor que representa uma personagem inventada, perante a matéria volúvel que é o tempo. Ele permanece numa inquietação estática, como a criança que, sentada ao piano, teimosamente, não quer aprender a tocar porquanto esta exigência de obediência não o engana nem cativa. É o mundo para além daquela realidade familiar e imposta, do seu “eu” que é constrangido e formatado pelas exigências da sua identidade, que lhe atrai mais a atenção. No entanto, não deixa a “pose de objecto”, enquanto o seu pensamento voa e o leva ao encontro de outras realidades fora da sua, quando ali, sentado ao piano:

“Uma vedeta passou no quadro da janela aberta. A criança virada para a partitura agitou-se levemente – apenas a mãe o soube – enquanto a vedeta lhe passava no sangue. O ronronar aveludado do motor ouviu-se em toda a cidade. Raros eram os barcos de recreio. O rosa do dia que acabava coloriu completamente o céu.” [2]

O autorretrato, como designado nos vários métodos artísticos, nos mais variados e diversos suportes, é um retrato de si mesmo, uma representação dita verosímil do próprio artista, de acordo com o que o artista pretenda que seja visto como aquilo que ele considera a sua realidade e identidade mais próximas. No entanto, o trabalho de Jorge Molder ultrapassa esse limite pré-determinado. O artista fotografa-se a si mesmo, é certo, todavia não estamos perante autorretratos. Estes são outro tipo de representações. Como afirma, aquele nas fotografias é outro, um homem, alguém. Muitas vezes, é nas fotografias de um objecto, de um animal, de outras tantas coisas que fotografa, que o próprio chega, por vezes, a comover-se, a reconhecer-se e a encontrar-se mais a si próprio, do que nessoutras em que é ele o sujeito da representação. Com efeito, podemos dizer que as suas fotografias, as suas autorrepresentações, nos falam mais dos outros e do mundo que partilhamos, do que de Jorge Molder.

Em 1998, Jorge Molder entrou pela primeira vez no templo que ocupa a Piazza della Rotonda, ou, como melhor o conhecemos, no Panteão de Roma. O interior, inesquecível pela frescura da penumbra entre os vários altares, pelo eco dos passos sob a tremenda abóbada que o cobre, é iluminado apenas por um ponto de luz, além do enorme portal de entrada. Entre enormes caixotões de pedra, há um óculo aberto ao céu. A luz é límpida, intensa e, como um relógio de sol invertido, a marca de luz que entra por este círculo na abóbada de pedra, vai-se metamorfoseando pelo interior do templo, marcando a passagem da matéria dos dias naquele espaço. Foi perante esta magnificência de um templo erigido para todos os deuses, edificado em tempos idos e preservado há mais de um milénio num lugar onde a História sempre fica e se guarda, que Jorge Molder observou e registou o círculo de luz do óculo e a sua transformação ao longo dos dias nesse espaço interior, lugar do tempo por excelência. Um círculo ao centro como um astro, circular como o sol ou a lua, luz encantatória que ilumina e seduz à passagem por uma imensa cúpula que, como abóbada celeste sobre nós, é céu distante – lugar de imaginação, de curiosidade, de descoberta.

Uma das séries de polaroids que aqui se apresenta é a matriz de uma série apresentada nesse mesmo ano de 1998, na Galeria Pedro Oliveira, no Porto. Estas polaroids foram produzidas para virem a ser impressas em placas de zinco, nas quais a transformação da luz ficou inscrita, e serem apresentadas nessa exposição, Trabalhos de precisão, na série intitulada P1. Aqui apresentam-se, pela primeira vez, a matriz dessa série de zincos. Trata-se de trinta e duas polaroids compostas sob formato de dípticos: o óculo do Panteão e a luz que o atravessa, projectada no seu interior, permanente mutação captada sob a forma de um instante fixado no plástico polarizado, como aguarelas pintadas, quando os pigmentos aguados tocam e se fundem na folha de papel. A outra série de 18 polaroids que aqui se apresenta concerne a matriz da série Registos provisórios, produzida em 2003 e apresentada por Jorge Molder numa exposição na Galeria SCQ, em Santiago de Compostela, sob outro formato: as imagens foram ampliadas e impressas em papel. Esta série mostra-nos, então, um homem que parece, em tom de provocação, jogar com, mas também lutar contra, a luz que o ofusca e encandeia. O homem, envolvido nestas diferentes partidas de luzes, arrebatadores, agita- se pela ofuscação que o provoca. Os olhos ora estão meio fechados ora abertos; o olhar deste homem ora procura a sombra ora desafia a luz, e as mãos, essas, parecem querer agarrar, prender, a luz que o encadeia. As mãos tapam, cobrem-lhe o semblante, procuram o melhor ângulo para que os seus olhos consigam ver para além da cegueira provocada pelo encandeamento. Algo à semelhança do que acontece numa luta entre o sono e a insónia, a queda e vertigem de quem adormece e de quem não é capaz de sucumbir ao sono. Ora, todas estas polaroids são singulares e distintas entre si, autónomas, passíveis de serem retiradas da cadência da composição. Contudo, se aqui observarmos a série como quem lê uma passagem de um livro à maneira ocidental, isto é, da esquerda para a direita, e de cima para baixo, o homem parece que num primeiro momento procura não ser encadeado pela luz intensa, procura a penumbra, para depois questionar aquela luz. Num jogo contínuo de desafio, interroga-a, confronta-a, até que, enfim, é apanhado. Retido, aprisionado, como aquele que, no cimo das escadas da galeria, nos aparece indistinto, de formas irregulares, mediante o estilete que o gravou.

A luz pode ser intensa, ofuscante. Pode ser luz de holofotes para apresentar alguém num palco, luz de faróis e de lanternas na procura de algo. Pode ser a luz clara e limpa do sol na madrugada, a luz de dias muito frios em que um raio de sol aquece o rosto, ou a luz de um crepúsculo quente em dias de Outono, nas paredes de um templo frio, lugar de velas de cera acesas e de ecos de passos e murmúrios. Mas a luz pode ser também luar entre as nuvens, claridade de lua cheia na abóbada celeste que nos une e que sempre nos incita à descoberta das estrelas. Luz branca, fria, aquática. A luz de um círculo demarcado na escuridão do céu: a lua, as luas que tão bem conhecemos, na chegada da noite. À noite todos os gatos são pardos... As particularidades perdem-se, atinge-se o universal. Diz respeito a todos. Somos anónimos, personagens de várias e diferentes histórias. Perdemos o sono, caímos no sono. Luz sobre um rosto indistinto, uma fita pousada, um peixe num aquário escuro. Gatos que conhecem a noite, as trevas, a vida além desta. Na noite, o luar incita a enfrentar o medo do desconhecido, incita a procurar, a descobrir, a imaginar. Voyage dans la lune de Georges Méliès... Uma lua com rosto, ou um rosto que é lua. Um rosto que é máscara? No reflexo proporcionado pela luz no espelho, só vemos uma máscara. Não nos vemos nunca a nós próprios, à nossa condição, à nossa identidade. Esse rosto que é sempre máscara, Jorge Molder encontrou-o, por excelência, no seu trabalho. Contudo, vai mais além: aqui, Jorge Molder mostra-nos que as nossas ditas máscaras caem perante luz que nos encanta, que nos ofusca e nos esconde. No limite, todos usamos máscaras, todos somos actores de uma vida perscrutada pelos outros. Como a pequena criança que se senta ao piano e, “em pose de objecto”, recria uma personagem, enquanto o seu pensamento voa e abraça a transformação da luz rosa-pálido do ocaso, reflectida na janela.

Filipa Correia de Sousa

[1] Marguerite Duras, Moderato Cantabile, tradução portuguesa de Flora Larsson e Ana Paula Laborinho, Lisboa: Difel Difusão Editorial Lda., 1958, pp. 8-11.

[2] Ibidem, p. 9.