MINGUANTE

Armanda Duarte & Fernando Calhau

Inauguração às

Até

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Escrever um poema

é como apanhar um peixe

com as mãos (...)

Adília Lopes [1]

À semelhança do gesto que Fernando Calhau faz quando observamos as quatro etapas de um quadrado a ser desenhado a partir de um ponto no solo, ao encontro dos limites acima, até onde os seus braços alcançam [2], a materialização dum quadrado imaginário sobre a paisagem de uma praia de areia fina sob um céu azul-claro, muito limpo, também Armanda Duarte deixou a marca do alcance dos seus dedos num pedaço de pele curtida, delimitada e suspensa, num quadrado desenhado no espaço. Todavia, este último exercício não trata o desenho de um quadrado imaginário, delineado sobre o papel depois do gesto que o compôs, como acontece com o quadrado de Calhau. Esta é uma forma quadrada estabelecida através da tensão exercida pela suspensão firme de fios de ferro, muito delicados, muito finos, quase da espessura de cabelos, meio enferrujados e quase invisíveis, num plano que se ergue diante de nós, desde o tecto ao chão e até às paredes vizinhas, criado mediante um olhar atento, um exercício rigoroso feito de movimentos cuidados. Todavia, na considerável distinção que possa existir entre estes dois desenhos, há pelo menos um ponto de encontro na natureza e na morfologia distintas destes dois quadrados. É que ambos, de uma forma despojada e muitíssimo franca, pela íntima curiosidade e atenção dada ao espaço e às coisas que nos circundam e circunscrevem por necessidade, dizem respeito à memória de um gesto que se tornou tangível: essoutro de Fernando Calhau, que aqui evocamos, por meio da tinta que traça quatro linhas sobre as fotografias que captaram, em quatro tempos, um movimento do corpo que teve lugar numa praia, e este, de Armanda Duarte, através da materialização do traço por intermédio de um filamento de ferro sujeito a uma retesada suspensão que contém em si, entrelaçados em si, pequenos fragmentos outrora pertencentes a um lugar que é, também ele, a praia.

As gravuras de Fernando Calhau aqui apresentadas mostram-nos ampliações de formas noutros lugares, de formas orgânicas, muito diversas e distintas, captadas na natureza. Trata-se de fotogravuras, imagens reunidas, tratadas e passadas a chapa, gravadas lado a lado, onde o preto e o branco imperam, mas onde há também lugar, pontual e surpreendentemente, para a cor verde, essa cor que, nas palavras do artista, lhe criava uma tão injustificável simpatia. Calhau descreve o tratamento do plano destas imagens como “superfícies, no fim de contas, que são paisagens” [3]. São superfícies rebatidas, sem um horizonte definido, sem uma hierarquização pré-estabelecida que determina o conceito de paisagem tal como o conhecemos, dando azo, assim, à possibilidade de que um céu de nuvens densas possa ser ali espuma do mar, e o mar possa assemelhar-se às formas irregulares e sedimentadas da terra, ou mesmo que a terra possa revelar as ondas bravias do oceano. Ou uma folhagem densa que se junta a pedras que podem ser pequenos seixos moldados pela força das marés e trazidos à margem, ou, ao invés, ser enormes composições rochosas que circundam extensas praias ou enigmáticas enseadas. A partir destas fotogravuras, demarcadas mais pela forma de quadrados e menos de rectângulos, ou de vários quadrados dentro de outros tantos quadrados, circunscritos e encerrados numa morfologia que lhe é tão bem conhecida, Calhau determinou novas paisagens e nelas aplicou etiquetas de papel e delicados cordéis, como quem cunha a descoberta e regista uma amostra de uma parte de mundo.

No quadrado que se desenhou para este espaço, sob planos que apelam ao movimento e à atenção muito prudentes do espectador, podemos encontrar pequenos apontamentos, vestígios e fragmentos de uma presença prévia que se torna ali manifesta, mediante um exercício de extrema minúcia e precisão de Armanda Duarte. Um conjunto de pedrinhas determina o peso da areia que a ladeia. Areia moldada por essas mesmas pedras, amontoadas pela delicadeza dos dedos, esses mesmos dedos que esticaram o fio de ferro. O fio enrola-se sobre um palito, ao encontro de uma união em nó com um fio de nylon, um fio de pesca verde. O fio prolonga-se e desenha a espessura de um dedo que é também molde de uma pequena concha encontrada na praia. Um galho fino tem o tamanho de uma mão, um fragmento de ferro aguçado tem o tamanho de uma falangeta. Uma espinha de peixe encurvada, delicada, notoriamente leve, foi outrora composição do esqueleto de um peixe muito difícil de encontrar e de apanhar. A meio, no chão, estão os moldes da ponta de dedos dos pés formados por areia, como os de quem contempla o horizonte à beira-mar. Olhando para cima, o recorte do limite dos dedos de uma mão numa pele de cabra cosida no fio negro. Em boa verdade, este é um quadrado que encerra em si vários encontros da artista com o mundo. Um mundo imenso que é aqui meticulosamente mesurado, encerrado, entrelaçado e desvelado, por entre um fio de ferro que o delimita. Cada fragmento parece o resultado de um espontâneo apelo cumprido, de uma procura por algo que se descobriu, o indício de algo que se encontrou e guardou, que se escondeu e depois se mostrou. Como na poesia, em que os pensamentos fixados e as sensações experimentadas são, enfim, tornados tangíveis, partilháveis e, por boa fortuna, se fazem reconhecíveis em nós mesmos. A sua obra é a transformação de memórias e de experiências vividas em coisa tangível, é matéria de um universo íntimo e puro, suscitado pela curiosidade e pela delicadeza de mãos, dado ali a encontrar e conhecer. E, de facto, Adília Lopes di-lo com muita agudeza de espírito, num poema ao qual dá o nome da sua tão cara amiga: o trabalho de Armanda Duarte é matéria que «nos manda / àquela parte / aquela parte / escondida / de nós mesmas / ou mesmos / onde somos / bichos de mato / do nosso próprio / mato / no nosso próprio / mato (...)». [4]

Fernando Calhau e Armanda Duarte partilham esta exímia atenção pelas imagens de um mundo que é partilhado, uma imensidão que nos é dada a distinguir pelas pequenas partes que o constituem, e que nos ligam, muito profundamente, à experiência desse mesmo mundo. Pela atenção dada a estes instantes, a estes registos e a estes fragmentos, Fernando Calhau e Armanda Duarte falam-nos desse sentimento cristalino de uma certa intuição de que o mundo é substância, inevitável e verdadeiramente gravada em nós. Um mundo que é céu, nuvens e água, que é oceano e terra. É experiência do tempo, do espaço, da liberdade ou da falta dela. É gesto, é percurso, é viagem. É vento que sopra nas ervas altas, é brisa salgada na praia, é margem, muitas margens, conchas e areais formados de infinitos grãos em constante movimento e metamorfose pela força do mar, muito antes da nossa chegada a este mundo. É luminosidade, é obscuridade, noite e dia. É luz do luar sobre as marés que a lua, lá em cima no céu escuro e estrelado, determina. A minguante a maré é baixa, e a luz da lua vai-se extinguindo ao ritmo vagaroso do tempo que determina o seu movimento à volta do nosso planeta. Esse planeta que alberga um imenso mundo repleto de muito pequenos mundos que experimentamos. Pequenos grandes mundos que os artistas, com uma transparência e franqueza desmedidas, – com uma “claridade, vinda não se sabe de onde, que por momentos [os] abarca”, no dizer de Maurice Merleau-Ponty [5] –, continuam sempre a dar-nos oportunidade de os vislumbrar, e para os quais nos ensinam a reparar, através do seu trabalho.

Filipa Correia de Sousa

1 Adília Lopes, poema intitulado “Arte Poética”, apresentado em Um jogo bastante perigoso (1985), in Dobra – Poesia Reunida 1983-2007, Assírio & Alvim e Adília Lopes, Lisboa, 2009, p. 12. Esta colectânea de poemas de Adília Lopes é dedicada a Margarida Jardim e a Armanda Duarte.

2 Fernando Calhau, Materialização de um quadrado imaginário, fotografia e tinta-da-china sobre papel fotográfico, 1974 (maquete). As imagens desta obra podem ser vistas, por exemplo, no catálogo Work in Progress, Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 120.

3 Palavras de Fernando Calhau em entrevista com Delfim Sardo, “Sem rede – Uma conversa com Fernando Calhau, Em quadro noites de Fevereiro de 2001 in Ibidem, p. 99.

4 Adília Lopes, poema intitulado “Armanda Duarte (1961)”, apresentado em A Mulher a Dias (2002), in op. cit., p. 450.

5 Maurice Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, tradução de João Tiago dos Reis Pedroso Lima, in Caderno de Filosofias, Estéticas (no8, Março de 1994), Associação de Professores de Filosofia, Coimbra, p. 33.