SEMPRE MUDA

João Queiroz

Inauguração às

Até

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(…) a cera derrete-se. Bem lá agita o rapaz os braços nus, mas, sem asas para bater, não logra apanhar ar algum.

Ovídio

According to Brueghel when Icarus fell it was spring

William Carlos Williams

É proposto um exercício. Um exercício que não parte de uma certeza, mas de uma proposta de descoberta, de uma contínua descoberta e invenção, da possibilidade de criar novos modos de ver. Para João Queiroz, a pintura nasce dessa primeira disposição a um contínuo exercício impulsionado pela atenção do olhar e pelo movimento dos gestos. Como é que nos relacionamos com aquilo que existe e que é dado? Como é que o nosso corpo se dispõe a estabelecer uma relação directa com as coisas, os fenómenos e os objectos, com o que está mais afastado ou com o que está mais próximo e ao alcance? De que forma o corpo está implicado no modo de ver as direcções que se intersectam, bifurcam e sobrepõem, ou de apreender as aberturas e oclusões naquilo que está diante de nós? Mais do que respostas, João Queiroz encontrou a abundância destas possibilidades, e o seu jogo permanentemente dinâmico, no tema da paisagem, nessa ideia concernente à experiência e à memória do encontro do corpo com o mundo. 

De facto, esta procura e reconhecimento de uma corporalidade através da pintura, é desde logo manifestada no início do seu percurso, por meio da encáustica. Através dela, é apurada a relação entre forma e superfície, e entre forma e fundo, espessura e transparência, metamorfose e permanente mutação das fronteiras daquilo que é apreendido, entre aquilo que é pintado e aquilo que é gravado – pintura e celatura, como no início dos tempos, no desenho das histórias míticas que foram tornadas permanentes na argila das ânforas gregas. A cera permite criar essas incisões, marcas, jogos de densidade e leveza na extensão da superfície. Matéria tornada líquida quando transformada pelo fogo, à qual se acrescenta pó, para quase imediatamente essa mistura se tornar de novo sólida, depois de aplicada sobre a madeira ou o papel. 

Nas encáusticas de João Queiroz, há uma pele que se quer corpo através da cera. Uma pele que muda. Mas o que muda? E o que subsiste? O mesmo pensou Descartes quando, aproximando um pedaço de cera do fogo, questionou se aquela cera se mantinha a mesma, não obstante a mutabilidade das suas propriedades sensíveis através da manipulação pelo calor. O que muda? Entre imagens incertas de testes de Rorschach, a cera toma outras formas que, ainda lembrando Descartes, a imaginação permite criar: a figura de um quadrado que se transforma, alonga e estreita, sempre mutável. A cera como uma pele que se molda, que guarda e preserva várias marcas, cicatrizes da experiência e da história intraduzível do corpo. Muda porquanto é mutável, muda porquanto acontece sob uma particular mudez. 

Sempre considerei muito bela a noção de “queda” que o João refere como sendo um ponto de partida no seu trabalho. Essa ideia de uma “boa queda”. A ideia de que o nosso corpo alcança e cumpre uma determinada leveza justamente por se saber pesado. E que a consciência de corporalidade implícita nessa eventual queda nos apanha sempre de surpresa, sobretudo diante de uma pintura. Se William Carlos Williams viu a queda de Ícaro, na pintura de Brueghel, como um momento despercebido no movimento do quotidiano, eco imperceptível de um corpo que caiu na água, do qual somente restaram algumas penas de cera incólumes a flutuar ao ritmo das ondas, arrisco dizer que a pintura de João Queiroz permite-nos compreender o fenómeno de queda numa ordem inversa. É através da sua pintura que o corpo, e o próprio pensar, se reconhece como movimento, densidade em constante queda, suspensa nessa reprodução dos gestos que, no limite, faz também reconhecer um anseio latente de pairar.

Filipa Correia de Sousa